Terça-feira, 28 de Julho de 2015

A CULTURA QUE NOS REDEFINE - e o Apocalipse

De quando em vez, ocorre-nos o termo apocalipse, apokálypsis, revelação, a propósito de acontecimentos novos, violentos, que alteram o só aparente curso calmo do que nos é contemporâneo. A barbárie ganha terreno. E deixa marcas de sangue e cicatrizes sobre a pele sensível daqueles que torna miseráveis. A Europa conhece bem esse sintoma, emergente nos seus mais nefastos momentos de morte, só nos últimos cento e quinze anos viu duas guerras mundiais, as revoluções russa e iraniana, em 1917 e em 1979, a guerra da Bósnia, os atentados terroristas da Eta, do Ira, dos Baader-Meinhof, das Brigadas Vermelhas, dos separatistas chechenos, entre outros exemplos a que se junta a assustadora escalada da direita e da extrema direita a reocupar estatutos de um poder que julgava perdido e privilégios que a história escrita pelos mais ingénuos considerava destinados a jamais se reabilitarem. A verdade é que a Europa aproveita agora os noticiários oportunos em que os Talibã no Afeganistão e no Paquistão, o Boko Haram na Nigéria, e o Al Shabab no Corno de África, cuja 'ideologia' é apenas o poder político e o dinheiro, fazem esquecer o gérmen da barbárie que sempre alimentou em todo o ocidente e que contagiou todo o globo. A angústia (de uma faceta cultural, assente em valores mais elevados) é a de assistir à emergente nova cultura, desprovida de plataformas, onde o elemento dinâmico é, ao mesmo tempo, o desconsolador: uma deriva propulsionada pelo Eu em direção ao que é insensato, catastrófico, desenfreado, mortal. A Europa viu o seu declínio em muitos espelhos, também na ideia medíocre mais recenete de que é nos mercados que se joga o futuro da civilização, e na austeridade que se amordaça os povos e os assalta, para com o seu dinheiro restaurar bancos falidos por erros de estratégia, de gestão e de ambição política míope e cruel. Um percurso doentio, esquecendo o Homem e os seus valores mais elevados, retirando-lhe o pundonor, a autoestima, a qualidade humana no que tem de mais louvável. As “massas”, convencidas de que a sua força está no desinteresse pelas instituições a que se subordinam – e não na capacidade de transformar as mesmas – passeiam-se pelas sombras moribundas do desencanto.

O poder exercido por muito poucos esmaga todos os outros, que tantos são. E os mais sofridos parecem surpreendentemente gratos apenas por continuarem a sobreviver, e sobreviver não passa da forma anestesiante e nauseante de viver. Expurgado no que tem de essencial, o homem afasta-se da sua cultura, daquela que o tinha como centro, e que levou milénios a evoluir a estádios toleráveis - e permite-se o avanço de formas variadas de manipulação, que tanto podem vir do mais demagogo tribuno ou da estrutura de crença mais enganadora. Em certos momentos do desgaste, alguns pensadores saem à rua para dizer o que pensam da maquinação e do desastre, da ferida aberta do quotidiano. Poucos são os que põem em primeiro plano a cultura – talvez porque ela seja uma casa comum, porém muito indecifrável. No pós-Guerra (em 1948, isto é, no pós-Segunda Grande Guerra), T.S.Eliot escrevia as suas Notes towards the Definition of Culture, as Notas para a Definição de Cultura, onde, no seu estilo conservador, procurava interpretar a Classe e as Elites, a unidade e a diversidade, a seita e o culto, a cultura e a política. O grande falhanço de Eliot esteve então no seu não distanciamento e na aparente pouca densidade da análise, o que constitui um contraste flagrante com outros escritos seus (sobretudo para quem conhece a consistência de toda a sua poesia, essa “superficialidade” era evidente). Genial – denso e genial – enquanto poeta, não é um crítico profundo do social, como não é um politólogo, um sociólogo, um historiador ou um antropólogo. A sua visão – de quase estudo social – “conservadora em política, classicista em literatura e anglo-católica em religião”, é superficial. Esse texto, de 1948, inspirará outro, de George Steiner, em 1971.

Sob o ponto de vista cultural, 1971 assina um dos acontecimentos mais revolucionários da história do homem: a Intel lança o primeiro microprocessador do Mundo. É a condicionante comum mais forte do futuro do homem, até aos nossos dias desgastados. Mas Steiner, alheio ao facto, escreve, ele também, “algumas notas para a redefinição da cultura”, num livro simbolicamente intitulado "No Castelo do Barba Azul". Steiner diz avisadamente que “é possível que o nosso quadro de apocalipse, ainda que tratado com moderação e temperado de ironia, seja perigosamente inflacionista”. É verdade que muito nos entusiasmamos com o catastrofismo e qualquer estudioso da psicossociologia do consumidor aconselha lançar aos títulos da comunicação social os gritinhos histéricos dos infortúnios, os gemidos do drama, da tragédia, do desastre – que tanto encantam a “massa” consumidora, a "opinião pública", sempre facilmente enganada pela opinião publicada. Com certa surpresa, reler o texto de Steiner, aqui e agora, com esta fluência de novos reveses do século XXI, conduz-nos à perplexidade interpretativa. Steiner afirma que “Não é o passado literal que nos governa, exceto, talvez numa acepção biológica. São as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construções simbólicas do passado, encontram-se impressas, quase à maneira de informações genéticas, na nossa sensibilidade”. Porém, talvez não sejam, como pensava Comte, os mortos, mas sim as suas imagens, a governar os vivos. É a ideia de cultura que outros adiante recuperarão, a cultura como um sistema de significação realizado, um sistema social caracterizado por formas padronizadas de comunicação. É também a tentativa de mobilização total do indivíduo pelo óbvio, que alguns autores sugerem, mas que nos inquieta vivamente.

Mas se Steiner afirmava, à época, que “cada época histórica se contempla no quadro e na mitologia ativa do seu próprio passado ou de um passado tomado de empréstimo a outras culturas”, a verdade é que presenciamos a emergência de gerações sem memória cultivada, sem referenciais humanos, sem o orgulho da prova da sua identidade. Gerações que facilmente desvalorizam o valor da vida humana e matam pelo único prazer de se sentirem vivos.

A cultura foi sempre entendida como o repositório chave dos valores culturais e das significações. Sem eles, sem esses valores, o plano inclinado da qualidade leva-nos do caos a uma espessa lama aniquiladora. Não sejamos perigosamente inflacionistas. Empunhemos só aquilo em que acreditamos, usando-o para a redefinição, mas sobretudo como criação da força da resistência onde nos defendamos do apocalipse, isto é de qualquer revelação, que se oponha àquilo que nos faz melhores e mais humanos.

Alexandre Honrado
Publicado por Re-ligare às 17:28
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