Foi num muito saboroso encontro – mais um – com o Professor Manuel Frias Martins, intelectual que me cativou pela leitura muito antes de conhecê-lo pessoalmente (eu corria o JL à procura dele, e das crítica literária que produzia, nesse Jornal de Letras onde também eu publiquei prosa, numa época que me parece já uma ficção esfumada); foi nesse encontro e pela gentileza de me oferecer dois livros seus, que revi uma frase inexplicavelmente perdida na minha memória. Manuel Frias Martins citou-a, em livro, e transcrevo-a agora: “o Reino de Deus é alcançado pela violência”.
A frase inquieta alguns – não me incluo, pois sou de uma formação onde os reinos pouco cabem e as inquietações vêm sempre dos meus pares e nunca daqueles que nos transcendem– e é de um filósofo político, Thomas Hobbes (1588-1679). Não há coincidências – mas no mesmo dia da oferta do livro e do reler da frase, num alfarrabista de Santa Catarina, vi na montra o Leviatã (de 1651, do mesmo Hobbes).
Quem lia as tirinhas de banda desenhada de um dos nossos jornais diários – onde, pensando bem, noutra época eu também publiquei prosa -,da autoria do norte-americano Bill Watterson, conhece as histórias do irrequieto Calvin (Calvino) e do tigre Hobbes, tigre de pelúcia que, produto do imaginário, materializa-se de acordo com os requisitos da ação que emerge do fantasioso Calvin, menino com ansiedades de adulto, sendo inseparáveis companheiros de inquietação e desventuras.
Calvin – homenagem a Calvino, cristão suíço-francês, da Picardia, que teve papel fundamental na Reforma Protestante – e Hobbes, que observava a natureza humana e a necessidade de governos e sociedades. No estado natural, enquanto que alguns homens possam ser mais fortes ou mais inteligentes do que outros, nenhum se ergue tão acima dos demais por forma a estar além do medo de que outro homem lhe possa fazer mal. Por isso, cada um de nós tem direito a tudo, e uma vez que todas as coisas são escassas, existe uma guerra constante de todos contra todos (Bellum omnia omnes). No entanto, os homens têm um desejo, que é também em interesse próprio, de acabar com a guerra, e por isso formam sociedades entrando num contrato social.
João Calvino, que viveu entre 1509 e 1564 e discorria acerca da depravação total do homem e acerca da predestinação e Thomas Hobbes, autor da célebre frase “O homem é lobo do homem”- ou seja, cada homem é predador de seu próximo. Thomas possuía uma visão obscura e pessimista da humanidade (visão que o tigre da banda desenhada compartilha). Mas Calvino via o homem obscuro a cada passo.
Manuel Frias Martins num dos livros que me ofereceu – As Trevas Inocentes - explica tudo isto bem melhor do que eu, que apenas recolho sentimentalmente algumas frases que ele me inspirou. E não havendo coincidências, pensar que tudo isto se passou quando os talibãs afegãos condenavam publicamente o atentado perpetrado, pelos talibãs paquistaneses, contra uma escola do vizinho Paquistão, afirmando que matar crianças inocentes vai contra os princípios do Islão. Não havendo coincidências, fico aqui ao canto a pensar no que ressalta da violência. Do que ela ensina. Do que contem e do dela pode extrair-se. A Paz não seria entendida sem o conflito que a motiva e gera. A violência e o sagrado (Frias Martins cita o título de René Girar que usa a mesma expressão) estiveram sempre na mesma antecâmara, na mesma sala ritual, à mesma distância – por ventura uma legitima o outro e vice versa. A história mostra o que Hobbes escreveu: “o Reino de Deus é alcançado pela violência”. Mesmo sabendo que esse patamar é propriedade da utopia. Como o da paz – que é um estádio em que os homens convivem provisoriamente apaziguados com os seus conflitos.
Alexandre Honrado
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