Domingo, 26 de Outubro de 2014

Entre a pobreza e a miséria

 

Participei, da forma mais modesta, na Jornada Internacional pela Erradicação da Pobreza levada a efeito no passado dia 17 de Outubro. Não sei se posso dizer que participei – pois dar a cara, escrever umas linhas, mostrar-me comprometido com o lado social e humano, não chega a ser digno de menção. Pode, ao ler-me, julgar que eu promovo qualquer equívoco, já que o tema não é cingido a Mafra, mas dir-lhe-ei que não só a conexão existe – em Mafra há pobreza, há miséria, há ainda o encapotar da mesma, sob o manto envergonhado de não confessar que se passa por privações graves – como é uma realidade cada vez mais generalizada. Ouvi vários argumentos nessa Jornada e no entanto só registei o eco daqueles que não ouvi. O mundo mudou nos últimos 40 anos. Sim, dos anos 1970 do século passado para agora. Não foi uma mudança nacional – aqui, mesmo assim, a euforia de Abril deu-nos a cor que não tínhamos e depois um futuro que temos vindo a perder, em especial nos últimos 3 anos – mas uma mudança profunda no mundo ocidental. Hoje há conflitos cada vez mais fortes e os mais ferozes são entre ricos e pobres – apesar da aparente calma da nossa sociedade portuguesa, passividade que reflete bem como os mais carenciados não têm voz nem acesso ao poder. Esses conflitos resultam do que se passou nestas quatro décadas: a crueldade progressiva suportada pela maioria das pessoas, numa economia moldada e codificada há décadas para servir o interesse de muito poucos. É todavia um erro pensar que vivemos num país em que, uma a uma, as instituições que eram suporte e esteio da sociedade vão sendo corrompidas, destruídas ou que sofrem uma implosão – é mais acertado dizer que é essa a imagem que estamos a adquirir (e a sofrer) do mundo em geral, sombra daquele que conhecíamos ainda há pouco. Não é um exclusivo nosso, portanto. É pouco – é pobre – brandir apenas um chavão. Por exemplo, o da necessidade de proclamar ilegal a pobreza. As vaias não bastam. Obviamente, sem ir incomodar Karl Marx lá ao seu repouso no Cemitério de Highgate, no Reino Unido, diria que o eco mais forte dos muitos que não ouvi ressoam na expressão luta de classes, que Marx e herdeiros brandiram como sua. A luta de uma classe de trabalhadores (os geradores da riqueza, a classe média) contra aqueles que a destituem e exploram. Uma nova luta, uma velha luta. É dela que resultam os pobres e sem eles não haveria os mais ricos. Outro eco que não ouvi é o da evidência: a recessão económica está ligada à recessão da democracia. Esta última é tão profunda, que há políticos que assumem que nem precisam de ouvir as pessoas – porque não são a sua prioridade. Mas o declarado abandono do interesse público, da responsabilidade e do compromisso com a real democracia por parte de uns é o que deve motivar todos os outros. É que sem as pessoas não se faz nada, nem mesmo a sua pobreza. Precisamos já de um novo modo de vida que não se baseie na maximização do poder de compra, mas na maximização dos valores importantes na vida. E como ainda há o que resta da democracia, ainda temos valores, ideais e sobretudo ainda temos o voto como arma. Não temos de regressar aos mercados mas ao respeito pelas pessoas, ao combate à corrupção e à influência empresarial sobre o destino social. E já agora, outro eco: são os cidadãos os defensores da cidadania.

         

 Alexandre Honrado, investigador e docente da área de Ciência das Religiões da Un. Lusófona

(texto escrito para o Jornal de Mafra)

      

 

 

Publicado por Re-ligare às 11:10
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