Terça-feira, 3 de Dezembro de 2013

Esta economia mata

Opinião de Joaquim Franco

Jornalista

 

Ao longo de oito meses de pontificado, em intervenções mais ou menos avulsas, textos e improvisos desconcertantes, homilias improváveis ou entrevistas surpreendentes, o papa Bergoglio manteve e reforçou as pistas, organizando-as agora na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.

Nos últimos dias veio à memória a missa de inauguração do pontificado de Francisco. Naquela manhã de 19 de março, o mundo mediático esperava as linhas programáticas do novo Papa. O novo Papa, ladeado pelos chefes de estado e de governo que se deslocaram a Roma para a cerimónia de praxe, pediu justiça e cuidado com a “Criação inteira”, falando várias vezes de ternura e bondade. Quem esperava mais, teve de se sentar. Mas as pistas estavam à vista de todos.

O texto é provocador para uma Igreja que carece de reformas profundas na atitude e na estrutura, e para um mundo político que carece de libertação, sobretudo em relação ao poder financeiro.

A novidade de Francisco está também na frescura assertiva com que vai ao “osso”, e que, desta vez, não serve apenas para legitimar os assuntos obsessivos e fraturantes da Igreja católica. A fratura maior dá-se a partir de uma crise antropológica, de “negação da primazia do ser” (Evangelii Gaudium, 55), para se transformar na “grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo”.  

O Papa lamenta as “ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira” (EG, 56), que negam “o direito” aos Estados de “velar pela tutela do bem comum”.

De facto, “criou-se um paradigma de vivência e convivência alicerçado na dimensão do consumo, que cedeu à tentação do supérfluo. Como temos refletido, o gozo pontual e vicioso de «ter» sobre o princípio do «ser». Um estilo de vida mais materialista - que, como se vê, entrou em fase de esgotamento” -, agravado por “uma elite do pensamento económico, neoliberal, que elevou o mercado à categoria de um «deus» intocável” *. Foi isso que se ensinou durante várias gerações académicas, que cresceram também em ambiente cristão católico, dissimuladas entre reflexões sobre a Doutrina Social da Igreja. “O dinheiro deve servir, e não governar!” (EG, 58), diz o papa Bergoglio, que sente a necessidade, no atual contexto da história, de exortar a uma “solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano”. Como dissera no Rio de Janeiro, em Julho, é um “sistema social injusto na sua raiz” (EG, 59). Não é possível impedir a violência “enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade”. Numa “sociedade que abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir a tranquilidade”.

Sejamos claros, um rendimento mínimo é sempre injusto para quem o recebe. Quanto mais não seja porque é mínimo. Mas há uns mínimos mais mínimos que outros. E não há democracia que sobreviva se a economia não tiver como prioridade o combate à exclusão e às desigualdades. “Esta economia mata” (EG, 53).

Alegar que um rendimento é mais seguro quanto mais mínimo for, é inverter o princípio da razoabilidade no combate às desigualdades e, em última instância, incentivar a selvajaria. Rendimentos que não garantam um mínimo de dignidade, que não correspondam à adequada retribuição pelo trabalho ou sejam residuais na disparidade, sustentam uma injustiça concreta. “Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz” (EG, 56). É aqui que as opções políticas, com a máxima da ética e sem amarras, podem fazer a máxima diferença.

Somos Pobres mas Somos Muitos, Verso de Kapa, p.96

Sugestões de leitura: Quando Jesus chorou (Clube do Autor) de Bodie e Brock Thoene; A Lista de Bergoglio (Paulinas) de Nello Scavo.

 

Editado em: http://sicnoticias.sapo.pt/opinionMakers/joaquim_franco/2013/12/02/esta-economia-mata

Publicado por Re-ligare às 11:31
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