Quarta-feira, 19 de Março de 2014

As reduções jesuítico-guaranis e o "triunfo da humanidade" (continuação e fim)

 

As reduções jesuítico-guaranis do Paraguai foram, sem dúvida, lugares de encontro intercultural e de descoberta (mútua) do Outro. Mas o que foi que permitiu este encontro e mútua descoberta? Houve, certamente, um conjunto de circunstâncias particulares, de que vamos mencionar apenas três, que a nosso ver são as mais decisivas: a tradição espanhola de defesa do índio, a dinâmica missionária dos Jesuítas e a resposta (ou feedback) guarani.

 

 

O despertar para o Outro

 

A descoberta do "Novo Mundo" revelou gentes desconhecidas, que causavam admiração pela sua inocente nudez ou a vida simples que levavam: o "bom selvagem". Todavia, essa admiração inicial rapidamente cedeu lugar à "exploração": o seu atraso técnico e cultural, aliado à ambição de lucro dos conquistadores, fez deles presa fácil do trato esclavagista. Oito anos apenas após a descoberta da América, a rainha Isabel a Católica teve necessidade de proibir o comércio esclavagista dos ameríndios, cedendo porém aos interesses lucrativos dos colonizadores, ao criar a instituição da encomienda (que rapidamente se transformou também em fonte lucrativa para a Coroa).

Porém, o sistema da encomienda dava origem a múltiplos abusos da parte dos encomenderos, que tratavam os indígenas praticamente como escravos. A Coroa, pressionada pelos religiosos (sobretudo os dominicanos), viu-se obrigada a legislar frequentemente sobre a questão: Leis de Burgos (1512) e Valladolid (1513), Ordenanças de Granada (1526), as Leis Novas (1542), as Ordenanças de Filipe II (1573), as Ordenanças de Alfaro (1612) e, finalmente, a Recompilação das Leis dos Reinos das Índias (1680). Ao mesmo tempo, criava a figura do protector del indio. Em 1516, Frei Bartolomeu de las Casas era nomeado para esta função com poderes e prerrogativas quase ilimitados, na medida em que era também seu procurador perante os tribunais, e inspetor geral ao serviço da Coroa. Mas não era o único. A partir de 1531, todos os bispos eram investidos como protetores dos índios nas suas dioceses; e, posteriormente, essa função "laicizou-se", passando a ser exercida, já a partir de 1554, pelos fiscales de la Audiencia (isto é, os promotores do Ministério Público) e por um Protector General, dependente do Vice-Rei.

Diego de Torres Bollo, o primeiro superior provincial das missões jesuíticas do Paraguai e grande impulsionador das reduções, é fruto deste contexto. Nomeado reitor do colégio de Quito, aí conheceu e se relacionou com o grande defensor dos índios D. Manuel Barros de San Millán, presidente e visitador da Real Audiência de Quito. Enviado à Europa para participar na Congregação Geral do seu instituto religioso, conheceu D. Juan de Salazar, um nobre de origem portuguesa e grande defensor dos índios na corte madrilena, que se estabeleceu posteriormente em Tucumán, onde gastou os seus bens em defesa dos índios. Uma vez nomeado provincial do Paraguai, tornou-se amigo do bispo de Tucumán, Frei Hernando de Trejo y Sanabria, um feroz opositor do "serviço pessoal" indígena. Finalmente, durante a missão do visitador Francisco de Alfaro, o autor das famosas Ordenanzas de Alfaro, procurou convencê-lo dos malefícios das encomiendas.

 

A aposta no Outro

 

As reduções jesuítico-guaranis são o fruto de uma opção missionária jesuíta, durante o longo governo do propósito geral Claudio Acquaviva (1581-1615): a defesa dos índios tornou-se, nessa altura, uma "prioridade" da Companhia de Jesus na América.

Em carta de 1584, dirigida ao provincial do Peru, o Geral dos Jesuítas encorajava os confrades a sentirem-se todos "missionários" e a aprenderem (obrigatoriamente) a língua nativa, uma obrigação que foi reafirmada na V Congregação Geral da ordem, em 1593-1594: "porque sem língua, [os nossos] não podem deixar de ser como mudos e de pouco efeito". Mais de vinte anos mais tarde, em 1607, sensível aos argumentos de Diego de Torres Bollo, e depois de uma junta teológica ter deliberado sobre o assunto, enviava uma carta circular mandando abolir o "serviço pessoal" de índios em todos os colégios jesuítas.

Chegado a Juli (Peru) em 1581, Torres Bollo depressa aprendeu que os jesuítas não se podiam dedicar simplesmente às "doutrinas" (isto é, às visitas esporádicas às aldeias indígenas), mas deviam investir nas "missões" fixas. Em Quito, Barros de San Millán mostrou-lhe que era absolutamente necessário proibir que se obrigassem os índios a trabalhar, para além do que estava estipulado no regime das encomiendas, e que se lhes pagassem salários justos. Depois, em Potosí, elaborou com seus companheiros a Breve relación de los agravios que reciben los indios (1596), uma corajosa denúncia das condições de vida dos índios peruanos. Ao viajar para a Europa, levava consigo a Historia general de la Compañia de Jesús en la Província del Perú (1600), onde a defesa dos índios aparece claramente como uma "prioridade" dos de Loiola na América. Chamado em 1603 a uma sessão do Conselho das Índias, Torres Bollo faz um memorial em defesa das missões fixas em meio indígena.

A simples enumeração do percurso de Diego de Torres Bollo mostra já o quão influente era este homem, discípulo de Francisco Suárez em Valladolid. E depois de eleito provincial da nova Província do Paraguai, passou de imediato à ação. Primeiro, aboliu o "serviço pessoal" em todas as casas da Companhia na sua província, redigindo um memorial com as razões que o motivaram: "Existem três razões que tornam injusto o serviço pessoal... a primeira é impor-se ao homem livre perpétua servidão... a [segunda] injustiça de não se lhe pagar um salário justo... que deve ser, pelo menos, suficiente para sustentar-se ele e a sua mulher, e poupar alguma coisa... a terceira injúria o trabalhar demasiado" (apud Zuretti 1991: 20). Depois, deu início à fundação de reduções de índios, onde pudessem viver sem ingerência exterior, governando-se por eles mesmos e aprendendo a viver como cidadãos e cristãos. Nas suas instruções, afirmava que "nem o rei tinha poder sobre a liberdade de seus vassalos, mas que era apenas credor de algum tributo, que lhe seria transferido pelo direito de encomienda, mas condenando todo o serviço pessoal" (Ibid.). Nas reduções, os índios guaranis trabalhariam livremente para si mesmos e sua família, ao mesmo tempo que assegurariam o tributo devido ao rei, como seus vassalos livres.

 

 

Aprender do Outro

 

É evidente que este projeto missionário, no seu início, tinha um cunho marcadamente paternalista. Do ponto de vista societal, o governador Hernandarias desejaria que os jesuítas "domesticassem" os guaranis, para que, embora poupados à exploração dos encomenderos, continuassem posteriormente a pagar o seu tributo, perpetuando precisamente o sistema da encomienda. E os próprios jesuítas seriam promotores de uma transformação cultural algo requintada, pela qual os guaranis seriam "moldados" em conformidade com o padrão socioeconómico da Modernidade: o objetivo seria transformar o índio selvagem e bruto (considerado muitas vezes como "preguiçoso" e "indolente") em índio "colonial" (trabalhador e produtivo).

As reduções jesuítico-guaranis foram, de facto, um projeto de desenvolvimento rural, tipicamente moderno e etnocêntrico (respondendo à mentalidade europeia dos missionários): implementação de um verdadeiro culto do trabalho (e de condenação da "preguiça" e do "ócio"); sedentarização e organização das populações guaranis, para comprometê-las no processo produtivo colonial; introdução da ordem e divisão do tempo, bem regulamentadas (com carácter quase sacral).

E se isso é verdade, também não podemos esquecer uma característica bem jesuíta: a adaptação missionária (ou inculturação). Inácio de Loiola pediu aos seus correligionários que se adaptassem às pessoas e povos evangelizados através de duas atitudes: primeiro, a captação psicológica dos destinatários da mensagem cristã; segundo, o conhecimento, estima e aceitação dos valores culturais dos povos a evangelizar. O brilho das reduções jesuítico-guaranis no final do séc. XVII e primeira metade do séc. XVIII só é compreensível graças a uma mudança de atitude relativamente ao trabalho indígena. Em lugar do trabalho individualizado e movido por interesses de ganho material privado (a conceção europaizante inicial), os jesuítas recuperaram a tradicional dimensão lúdica e religiosa do trabalho (coletivo) indígena, que permitiu um novo empenhamento na realização de atividades diversificadas e desgastantes.

 

Bibliografia essencial:

Cantù, Francesca, "Il generalato di Claudio Acquaviva e l'identità missionaria della Compagnia di Gesù. Note e prospettive sulle missioni americane", in A Companhia de Jesus na Península Ibérica nos sécs. XVI e XVII: Espiritualidade e cultura, vol. I, Instituto de Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pp. 151-170.

Souza, José Otávio Catafesto de, "Uma análise do discurso missionário: o caso da 'indolência' e 'imprevidência' dos guaranis", in Anais do VIII Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros. As missões jesuítico-guaranis: cultura e sociedade, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras D. Bosco (Rio Grande do Sul), 1988, pp. 103-123.

Zuretti, Juan Carlos, "Um precursor de los derechos humanos en el Tucumán del siglo XVI: el Padre Diego de Torres Bollo s.j.", in Teología, 57 (1991), pp. 13-22.

 

Porfírio Pinto

Publicado por Re-ligare às 09:49
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