Domingo, 28 de Setembro de 2008

Implicações do Paradigma Holográfico

Caro António,

Depois de mergulhar em profundidade no manancial de informações que forneceste sobre as referências filosóficas e místicas a que Wilber faz recurso, e antes ainda de abordares as 5 Estruturas da consciência (conforme o “modelo de Gebser”) – o “esforço em apneia” requer também algum tempo de recuperação – proponho fazer uma paragem para discutir um aspecto problemático que, em minha opinião, atravessa a argumentação exposta por Wilber, presente numa das tuas cartas.

Como ponto de partida, relembro um parágrafo do teu texto (Carta 2, segunda parte) onde a questão é mais evidente: “O impulso em direcção imanência/à transcendência parece ser pois intrínseco à Vida Manifestada, logo também à Vida no estágio humano. Manifesta-se não só pela busca do espiritual (logo religioso) da humanidade, mas também nas aspirações da ciência, da tecnologia, da filosofia, da teologia e da arte (...). Hoje em dia as raízes metafísicas do Ser irrompem na ciência, tornando-se visíveis, amplificando a física, que se viu “quântica”, corroendo a ideologia materialista que tem sido a doutrina e a crença de muitos, senão da maioria dos cientistas nos últimos duzentos anos”.

Ao procurar integrar o espectros tão largos de conhecimento (do religioso ao místico, de Oriente a Ocidente), surgem questões preliminares que importa acertar. A busca de um diálogo efectivo entre o científico e o místico, demanda um razoável esforço de aproximação; de reformulação de conceitos de forma a neles integrar a nova perspectiva. Assim, o pensamento científico passa a considerar também o conhecimento alcançado no âmbito da experiência mística. E o oposto terá de dar-se também para que o diálogo seja efectivo. E é aqui detecto algumas dificuldades.

Primeira questão: parece-me haver necessidade de esclarecer o que se pensa por “ideologia materialista” enquanto “doutrina” e “crença”. Há uma grande diversidade de conceitos e comportamentos dentro do espectro que se usa designar por “materialista” e, ao meter tudo no mesmo saco, perde-se o discernimento sobre as suas múltiplas diferenciações. Por outro lado, uma concepção “materialista” (aceitemos o uso do termo em lato senso) terá diferente expressão se encarada como “doutrina” ou como “crença”. Por último, situando a nossa discussão no âmbito da ciência e da religião, diversos são os casos de cientistas (dos ditos “materialistas”) que também manifestam  uma crença religiosa. E há também aqueles que, situando-se numa posição ateísta manifestam um entendimento integral do Cosmos onde também tem lugar a dimensão Espiritual.

Numa perspectiva que pode ser aceite, creio, mesmo numa equação “materialista” do problema, o surgimento de um novo paradigma (como é o caso do paradigma holográfico, com incidência nas formulações da física quântica e da psicologia), corresponde às necessidades e possibilidades específicas do momento histórico em que vive a Humanidade, que é marcado tanto pelo estádio de desenvolvimento científico-técnico como pela Globalização[1]. A “verdade” do “paradigma holográfico” impõe-se como metáfora porque melhor exprime esta etapa da construção colectiva do auto-conhecimento do ser humano.

Mas o ser humano é complexo (citando o historiador António Borges Coelho numa entrevista recente à Antena2): é, ao mesmo tempo, capaz de exercer uma criatividade extraordinária e é, também, um animal de fezes. O Homem precisa, para sobreviver, de diariamente alimentar-se e de evacuar ...). Dito de outra forma, e continuando a citar o historiador Borges Coelho, o ser humano é capaz de criar, na Terra, o Céu e o Inferno. O que nos leva ao questionamento da primeira parte do parágrafo acima citado. A questão está no nexo estabelecido entre os níveis espiritual e religioso quando se refere a ... busca do espiritual (logo religioso) da humanidade ... .

O discurso religioso é essencialmente normativo. Adequando-se ao momento em que é expresso, realiza uma aproximação metafórica, uma síntese capaz de guiar o comportamento individual e colectivo. E essa busca de adequação às circunstâncias determina o seu sentido, limitando-lhe também o alcance espiritual. O discurso metafórico, porque construído com base em analogias vivenciais, empresta e amarra o conteúdo religioso à ganga do tempo histórico.

Ora, podemos aceitar que o nível espiritual corresponderá ao de maior elevação, onde o ser humano se distancia mais da sua origem animal; onde o ser humano se afirma pelo refinamento da capacidade subtil. Mas ainda estaremos longe de poder estabelecer um nexo profundo entre a religião (enquanto sistema de normas de comportamento) e a espiritualidade (enquanto manifestação desse nível mais elevado de existência).

Olhando para a sua concretização histórica (seja observando nos ciclos mais longos, seja nas perturbações da história moderna), a religião, que é um instrumento de coesão humana, está também associada às grandes fracturas sociais, surgindo como motivo para as violências mais diversas. É claro que os discursos religiosos propugnam a Paz, o Amor, a Concórdia e a Bem Aventurança e devemos tê-los como genuínos e sinceros. Mas a significação mais profunda (no sentido de se aproximar de uma “verdade”) de um comportamento surge quando confrontamos o discurso e a praxis.

Quando falamos em Humanidade situamos o ser humano na sua existência colectiva, apelando a um nível amplo de abstracção (espacial e temporal). Na história da Humanidade, o discurso religioso assume especial relevância pela sua significação enquanto normativo ético. Mas, sendo expressão de elevação espiritual, a ética não opera no âmbito exclusivo da Religião: a Ética é, como dizes na 3ª carta, uma disciplina do conhecimento que “examina criticamente as bases filosóficas da acção”.

Assim, a Ética questiona também o comportamento religioso e, nesse simples acto, demonstra que Espiritualidade e Religião não se encontram no mesmo nível. A Religião é um caminho para alcançar a Espiritualidade (mas não a contém, nem necessariamente, nem em exclusivo).

Por último, cabe lembrar a crítica de Wilber acerca da interpretação corrente da teoria holográfica de Bohm e que, simplificando muito, alerta para a diferença entre a existência de uma correlação e de uma relação causal. Físicos, psicólogos e místicos concordam em utilizar uma mesma metáfora (a do paradigma holográfico) e essa metáfora revela um alcance elucidativo mais amplo que o paradigma anterior. Mas continua a tratar-se de uma metáfora. Numa perspectiva diversa, mas utilizando os mesmos recursos que a ciência contemporânea disponibiliza (da física sub-atómica à astro-física) pensadores e cientistas “vinculados”, por exemplo, à Igreja Católica (cf. na internet o portal do Observatório Astronómico do Vaticano), defendem haver indícios que sustentam a teoria da Inteligência do Acto Criador como expressão da acção Divina.

Os novos instrumentos de observação e de abstracção estendem a capacidade de conhecimento. A “materialidade perceptível” amplia-se em dimensão e diferenciação e a Humanidade encontra uma nova possibilidade de interpretar sinais de “ordem” e de “inteligência” no Cosmos. Mas, para daí inferir uma prova “científica” da natureza divina do acto criador[2] (porque portador de inteligência) como alguns pretendem, haverá outros passos a dar.

A capacidade que cientistas como Bohm revelaram em procurar um entendimento mais largo dos problemas que procuram resolver, abandonando o filtro pré-conceptual com que operavam (sendo esse acto de despojamento, ele próprio, um novo recurso metodológico) dá um bom indício àqueles que, nas outras extremidades da questão, procuram um entendimento mais largo: há que despojar da parafernália conceptual dogmática (tanto teológica como científica) e procurar, de facto, entender o discurso alheio (pelo menos, antes de dizer que não se concorda...).

Todavia, Bohm, Capra, Wilber e muitos outros ancoraram as suas novas concepções na “mística oriental”[3], obrigando-nos a estender o campo de discussão a essa “nova” refinada e antiquíssima filosofia. De tal forma que hoje não é mais possível (a quem quiser, seriamente, debruçar-se sobre problemas relativos à percepção, ao conhecimento, à meditação, etc. tanto numa perspectiva psicológica como filosófica e, por maioria de razão, numa área como a ciência das religiões), alhear-se desse conhecimento.

Mas podemos também encontrar razões que justificam a crescente influência da “mística oriental” no pensamento científico e filosófico ocidental. Em busca de resposta para questões globais, derrubam-se as fronteiras mentais ditadas pela diferença cultural. E a mística oriental não só é portadora de um sistema de explicação do mundo que se revela hoje mais amplo e adequado ao novo “paradigma holográfico”, como a sua paulatina aceitação no mundo ocidental acompanha o crescendo de importância (também económica) das sociedades e culturas orientais no mundo globalizado.

Abraço,

Alexandre

 

 



[1] Com tudo o que revela de positivo e negativo (a capacidade de auto-conhecimento amplia-se na “mesma” medida em que a crise ecológica se afirma como o mais sério desafio à sobrevivência das sociedades humanas). E, também por isso, o crime ecológico passou a integrar o rol dos pecados capitais ...

 

[2] Encontramos em Génesis o discurso teológico judaico-cristão que afirma a natureza divina do acto criador (Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança). Mas, sendo o texto bíblico um produto da cultura humana, podemos constatar, no mesmo passo, que, em cada momento histórico, o homem define Deus à sua medida e necessidade.

[3] A generalização é, como já o demonstraste, abusiva.

Publicado por Re-ligare às 14:22
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