Quinta-feira, 10 de Maio de 2012

A origem da Tora

 

 

 

Ao longo de vários meses, fomos partilhando com os leitores deste blog umas poucas reflexões acerca de alguns textos do livro do Êxodo, fruto da investigação que então realizávamos. Esta prende-se com a origem e desenvolvimento das «tradições» do Pentateuco. Atualmente, estamos convencidos que o livro do Êxodo é aquele que melhor ilustra o desenvolvimento dessas tradições: começou por ser um «mito fundador», elaborado num momento de grande esperança face ao futuro, o regresso do exílio; depois, «testemunha» o confronto intelectual entre duas correntes, uma ligada ao sacerdócio (a «Escola de Santidade») e outra aos meios levitas (os herdeiros dos «Deuteronomistas»); enfim, no momento da elaboração do «livro da Tora», o contributo de várias comunidades: Garizim, Jerusalém e a diáspora egípcia (Alexandria?).

 

O mito sacerdotal

 

Nas reflexões enviadas, creio que ficou suficientemente claro que aderimos à proposta de Albert de Pury, que defende que o ponto de partida de tudo é o chamado «documento sacerdotal de base» (ou Pg). No início da época persa, um grupo de sacerdotes regressados da Babilónia elabora um «mito fundador», à semelhança do que conheceram naquela metrópole mesopotâmica: o Enuma Elish. Tal como este, também o mito sacerdotal relata a criação do mundo (cf. Gn 1) e de Israel (cf. Ex 14), culminando com a construção de um santuário para Javé, que vem habitar no meio do seu povo (cf. Ex 40,34).

O objetivo deste documento era sustentar os esforços de reconstrução do templo de Jerusalém. E, provavelmente, à semelhança do seu homólogo babilónico, também o mito sacerdotal judaico seria lido durante uma celebração a Javé: o Dia da Grande Expiação (cf. Lv 16).

Em síntese, portanto: da biblioteca destes sacerdotes faria parte, além do seu «mito fundador» (grosso modo, os textos sacerdotais de Génesis1 a Êxodo 40), um conjunto de normas relativas aos sacrifícios (cf. Lv 1-7), bem como outras relativas à pureza ritual (cf. Lv 11-15).

 

A revelação do Horeb

 

É provável que esses sacerdotes conhecessem ainda a reflexão levada a cabo em meios laicos – pelos Deuteronomistas –, que procuravam compreender e justificar teologicamente os acontecimentos catastróficos de 597 e 587: o exílio das elites de Judá e a destruição do templo. Seria Marduk mais poderoso do que Javé? Na sua opinião, não. Esses acontecimentos não são senão um «castigo» divino pela infidelidade do povo, e, sobretudo, dos seus representantes (os reis). É por isso que tomam a peito o projeto de elaboração de uma «historiografia» de Israel/Judá (que vai de Josué ao final de 2 Reis).

Na linha dos oráculos de Oseias, também eles entendem que Israel teve origem no deserto, lugar do seu encontro com Javé. Foi aí – no Horeb – que Deus se revelou a Moisés (sem dúvida, um profeta e líder transjordânico). Agora, no início do período persa, essa figura de Moisés vai assumir o papel de duas instituições de Israel/Judá: na ausência de rei, é ele o novo legislador (aquele que transmite ao povo a coleção de leis deuteronomistas: Dt 12-26); além disso, na ausência de profetas credíveis, passa a ser ele o único verdadeiro profeta, porque intermediário da palavra de Deus para o povo (cf. Dt 18).

E se os Deuteronomistas são escribas ligados ao palácio – estando, por isso, entre os primeiros deportados –, é perfeitamente concebível que da sua biblioteca fizessem parte uma coleção de leis (o código deuteronomista; cf. Dt 12-26), algumas crónicas da monarquia de Israel e de Judá (Samuel e Reis) e alguma narrativa propagandística de conquista (Josué).

 

Tensão entre sacerdotes e levitas

 

No livro do Deuteronómio, a classe sacerdotal identifica-se plenamente com os levitas. Não é assim nos livros precedentes (Êxodo, Levítico e Números). Nestes, a classe sacerdotal restringe-se à linha de Aarão, estando esta em tensão com os demais clãs levitas (veja-se, por exemplo, Nm 16-19).

Em meados do período persa (com a conclusão das obras do templo) terá havido, muito provavelmente, uma reestruturação da classe sacerdotal, de que se destacou a linha aaronita. Eles são responsáveis por muitos dos textos do Pentateuco: para além do «código de santidade» (cf. Lv 17-26), também vários textos do livro do Êxodo (como, por exemplo, a genealogia de Ex 6 ou as normas relativas à construção do tabernáculo em Ex 25-31 e 35-40), mas ainda o livro dos Números – e até, talvez, a estruturação do livro do Génesis em toledot (= «gerações»). Por isso, há quem defenda que a «Escola de Santidade» seria responsável pela edição de uma proto-Tora, no final do séc. V a.C. (por volta do ano 400).

De qualquer modo, esta apropriação da função sacerdotal pelos aaronitas é bastante criticada em meios levitas, os prováveis responsáveis pela introdução de alguns textos, aparentados aos dos deuteronomistas, nos livros do Êxodo (sobretudo, os relativos à aliança sinaítica; cf. Ex 19-24 e 32-34), mas também em Números (os textos relativos à instalação na Transjordânia). O episódio do bezerro de ouro fabricado por Aarão, em particular, é de uma tremenda ironia para com a linha sacerdotal aaronita.

 

A edição final da Tora

 

A edição da Tora ocorreu, provavelmente, no final do período persa e início da época helenística, sendo resultado de um compromisso entre Garizim, Jerusalém e a diáspora egípcia – ou seja, pouco antes da célebre tradução dos Setenta (LXX), para o grego.

Os primeiros cinco capítulos do livro do Êxodo, sobre os quais nos debruçámos longamente (com várias contribuições para o blog), refletem esta última fase: o início do livro estabelece uma relação com a história de José, oriunda da diáspora egípcia, mas que reflete também as preocupações samaritanas (Siquém – onde se situa Garizim – é propriedade de José, por especial favor de Jacob; cf. Gn 48,22); Moisés é apresentado, desde início, como uma figura ambígua – meio egípcio, meio judeu –, com a qual pretendem identificar-se os judeus da diáspora; a gaguez de Moisés é «sintoma» do processo de canonização da Tora, pois, mais importante do que aquilo que ele diz e faz (através de Aarão), é aquilo que ele deixa por escrito; enfim, estes textos fazem ainda «eco» de outras tradições extrabíblicas acerca de Moisés (o Moisés milagreiro, «leproso» e quase divino).

Mesmo assim, isto não quer dizer que estejamos já perante o texto definitivo. Os manuscritos bíblicos de Qumran (dos séculos II e I a.C.), bem como as diferenças entre os textos da LXX e o texto Masorético (nomeadamente em relação a algumas passagens do Êxodo), mostram que a canonização definitiva não aconteceu senão em plena era cristã.

 

Porfírio Pinto

 

 

Publicado por Re-ligare às 21:31
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1 comentário:
De Fernando a 11 de Maio de 2012
Parece ser um blog prometedor.

http://www.teologia-para-pensar.blogspot.pt/

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