Terça-feira, 28 de Janeiro de 2014

Visita a uma redução jesuítico-guarani

 

 

 

Em recente viagem à Argentina, tive a felicidade de visitar a redução jesuítico-guarani de San Ignacio Miní (ver Imagem 1), uma das mais bem conservadas da Argentina, e que foi proclamada pela UNESCO – e a justo título –, em 1984, "Património da Humanidade". Impressionado pela visita, e sabendo que também o Padre António Vieira quis realizar essa experiência no Maranhão, fiquei curioso acerca do que foram as reduções jesuítico-guaranis e tentei aprofundar o tema. Aqui partilho com os leitores algumas ideias.

 

Breve história da redução

A redução de San Ignacio Miní (isto é, "a Pequena", para a distinguir de San Ignacio Guazu, "a Grande", no Paraguai) foi fundada pelos padres José Cataldino e Simão Mascetta, em meados de 1610, no Guairá (atual Estado brasileiro do Paraná, mas que na altura pertencia ao Governo do Rio da Prata e Paraguai). Porém, em 1631, em plena crise provocada pelas "entradas" dos bandeirantes paulistas, e juntamente com a redução de Nossa Senhora do Loreto, emigrou para sul, para as margens do rio Yabebirí (na atual província de Misiones, Argentina), como testemunha o jesuíta António Ruiz de Montoya, um dos protagonistas deste "êxodo", no seu livro Conquista espiritual (Madrid, 1639). Em 1696, estabeleceu-se definitivamente no local que hoje nos é possível visitar, atingindo então o seu apogeu, com construções em pedra e uma economia florescente. Depois da expulsão dos jesuítas, em 1768, a redução continuou a funcionar, mas em clara decadência, até que em 1817, quando tropas paraguaias a invadiram, saquearam e queimaram, recebeu o golpe fatal. Lentamente, a vegetação acabou por assenhorar-se do conjunto de edifícios abandonados.

 

Um "convento-cidade"

O traçado urbanístico da redução assemelha-se ao de muitas outras e responde a um esquema que se impôs no final do séc. xvii (ver Imagem 2), de que faziam parte: a plaza mayor, o núcleo principal (o templo, ladeado do claustro/colégio e do cemitério), as casas da população indígena (perfeitamente alinhadas), as ruas e outros edifícios (nomeadamente, as oficinas, a casa das viúvas ou a pousada).

 

A plaza mayor, bem à maneira castelhana, mas herdeira da tradição mediterrânica da ágora (grega) e do fórum (romano), constitui o elemento ordenador do espaço urbano e o lugar onde se centravam todas as celebrações cívicas, ou mesmo religiosas (a par do templo).

O colégio ou claustro (porque incluía a residência dos dois sacerdotes da missão) era o polo educativo da redução: ali acudiam as crianças, a partir dos 6 anos, para aprender a ler e a escrever. Em geral, faziam-no em guarani; mas os filhos dos caciques e autoridades comunais aprendiam também castelhano e latim. Depois, o ensino era completado com aulas de religião, urbanidade, aritmética e música. As raparigas aprendiam costura e bordados.

Ao lado do colégio, situavam-se ainda as oficinas artesanais: cozinha, padaria, tecelagem, carpintaria, forja e trabalho com pedra. E, por detrás dos edifícios, a horta comunitária. O regime agrícola era misto: por uma lado, era dada a cada família uma parcela de terra (abá-mbaé), que cultivava para proveito próprio; por outro lado, ajudavam por turnos nos terrenos comunitários (Tupá-mbaé), sendo o seu trabalho remunerado (em espécies). O que produziam nos terrenos comunitários era destinado para cobrir as necessidades da comunidade: pagar o tributo ao Rei, sustentar os missionários, os doentes, os órfãos e as viúvas, e socorrer as povoações vizinhas em dificuldade.

Ao longo da história, olhou-se para esta experiência jesuítica como a realização de uma utopia (fosse ela a platónica, a de Moro ou a de Campanella, ou ainda como uma antecipação do ideal comunista), mas o estudioso das reduções jesuítico-guaranis Arno Kern vê nela, simplesmente, uma nova experiência "monástica", em que a evangelização e o culto andavam a par do esforço de civilização (ou urbanidade). "[Os jesuítas] partem da conceção [...] de que é preciso reduzir o indivíduo à vida na cidade, torná-lo num cidadão. Depois de civilizado, esse indivíduo será cristianizado" (Kern 2012).

 

A "redução" de índios

A criação de aldeias indígenas não é um exclusivo dos jesuítas. Se é certo que no Brasil, desde muito cedo, se criaram aldeias indígenas, na América espanhola essa prática foi também frequente. Por isso, antes da criação das suas próprias reduções, os jesuítas do Paraguai informaram-se junto dos franciscanos, que por então já atendiam cerca de dez aldeias indígenas sob o regime da encomienda. Estes aldeamentos, demasiado perto dos centros de decisão, acabavam por sofrer a intromissão constante dos encomenderos, particularmente no chamado "serviço pessoal" (obrigando os índios a trabalhos "escravos" na encomienda, para lá dos estipulados nas leis gerais).

A estratégia dos jesuítas foi diferente. Embora tenham também estabelecido algumas reduções sob o regime da encomienda (como, por exemplo, San Ignacio Guazu), a maior parte delas não o são e estão longe dos centros administrativos, pelo que eram menos incomodadas pelos mencionados "serviços pessoais" (Salinas et al. 2012). E é isso que faz delas verdadeiras "reduções". "Reduzir" índios, na terminologia da época (dos bandeirantes), era prepará-los para serem vendidos ou utilizados como escravos (Robles 2007). O que os jesuítas faziam era prepará-los para serem "cidadãos". Não lhes interessava doutrinar apenas índios "encomendados", como faziam outras ordens ou ainda o clero secular, mas queriam prepará-los para viverem em sociedades urbanas, de preferência longe das sociedades coloniais.

É por isso que esta ação dos missionários jesuítas foi tão admirada na Europa de então. Um homem como Voltaire, conhecido pela sua profunda antipatia pelos jesuítas, não hesita em considerar as reduções jesuítico-guaranis como um "triunfo da humanidade" (Melià 2010).

As reduções jesuítico-guaranis são verdadeiros "lugares" do encontro intercultural, de descoberta (mútua) do Outro, com traços de profundo humanismo. Por isso prometo voltar a este tema. Até breve.

 

Porfírio Pinto

 

Bibliografia:

Kern, Arno, "Armados, os guaranis não seriam escravizados", in www.ihu.unisinos.br/noticias/514843-armados-guaranis-nao-seriam-escravizados [2012] (consultado em 25.01.2014).

Melià, Bartomeu, "Missão jesuítica, uma experiência de contato", in www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3600&secao=348 [2010] (consultado em 25.01.2014).

Robles, Orivaldo, A Igreja que brotou da mata. Os 50 anos da Diocese de Maringá, Maringá, 2007.

Salinas, María Laura, e Wucherer, Pedro M. Omar Svriz, "San Ignacio Guazú: encomiendas y Jesuitas en el marco de una reducción. Siglos xvii y xviii", in www.jesuitica.be/research/view/item/4162/ [2012] (consultado em 25.01.2014).

 

 

 

Publicado por Re-ligare às 13:16
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